Futebol
nordestino em discurso na TV Esporte Interativo Nordeste
Artur
Alves de Vasconcelos*
Domingos
Sávio Abreu**
Destaque da página inicial do site da TV Esporte Interativo Nordeste.
Acessada em fevereiro de 2015
Os
canais Esporte Interativo são um grupo de comunicação especializado em esportes
composto por duas emissoras de TV por assinatura (Esporte Interativo e Esporte
Interativo Nordeste) e um serviço de transmissão online chamado EI Plus. Dentre
vários outros torneios nacionais e internacionais, eles transmitem com
exclusividade a Copa do Nordeste de Futebol desde 2010. Além disso, no ano de
2014 o EI[1] passou a transmitir alguns
campeonatos estaduais de futebol daquela região. O interesse do EI no futebol
nordestino torna-se explícito com o advento, no final de 2013, da TV Esporte
Interativo Nordeste (EI-NE), dedicada à transmissão de competições esportivas
sediadas em terras nordestinas, com ênfase especial ao futebol.
O EI,
ao criar os materiais de divulgação desses torneios, produz discursos que falam
tanto sobre a “identidade” do Nordeste quanto a respeito das características do
futebol praticado na região. Nosso desejo nesse artigo é refletir sobre a
identidade futebolística do Nordeste que são (re)criadas pelo EI. Para isso, observamos
materiais visuais produzidos nos sites e redes sociais, vídeos institucionais,
dentre outras ações.
O EI-NE
utilizou de maneira recorrente dois slogans em 2014: #ONordesteMerece e
#NordesteLivre. Já em 2015 passou a difundir a frase "Orgulho do Torcedor Nordestino"[2]. O sentido dessas frases
revela uma ideologia mais profunda, que é melhor compreendida dentro do
contexto da bifiliação clubística no Nordeste, sobre o qual falaremos agora de
maneira introdutória.
É
significativa a quantidade de fãs de futebol no Nordeste que torcem por dois
times; um de seu estado e outro de uma região diferente, especialmente dos
estados de RJ e SP. Esses torcedores são pejorativamente chamados de “mistos”.
Tal alcunha foi criada por outros torcedores, que são contrários à maneira
“mista” de torcer: os “anti-mistos”. CAMPOS & TOLEDO (2011) nos apresentam
o conceito de “bifiliação clubística” para nos referirmos aos torcedores
“mistos”, expressão que usaremos de agora em diante.
Faixa "Vergonha do Nordeste" feita por torcedores do Vitória-BA
em crítica aos flamenguistas baianos
Os
anti-bifiliação produzem diversas falas que criticam a bifiliação clubística.
Segundo eles, o interesse de um nordestino por um clube como o Flamengo, por
exemplo, adviria de uma influência alienadora da mídia brasileira. A presença
constante daquele clube carioca na imprensa nacional influenciaria enormemente
na escolha do torcedor Nordestino, que acabaria por adotar como “seu” um time
que na verdade pertence “aos outros” (VASCONCELOS, 2011). Os anti-bilifiação
também argumentam que as instituições mais importantes do futebol brasileiro,
como a CBF e a mídia (representada pela Rede Globo, detentora dos direitos de
transmissão dos principais campeonatos de futebol no Brasil) atuariam em favor
dos grandes clubes de RJ e SP (chamados de “times do eixo”), em detrimento dos
demais. Esse favorecimento daria aos clubes “do eixo” grande poder político,
midiático e, por consequência, econômico, enquanto os outros times do país,
inclusive os nordestinos, não receberiam uma parcela justa desses benefícios.
Os anti-bifiliação afirmam que os bifiliados, ao torcerem por um time “do
eixo”, estariam favorecendo a manutenção dessa estrutura desigual,
desvalorizando algo que pertence a eles – os clubes nordestinos – em favor de
algo que é “dos outros”. Uma das frases mais comuns e impactante usada pelos
anti-bifiliação, sendo estampadas em camisas e faixas nos estádios, é “Vergonha
do Nordeste”, tendo pelo menos dois sentidos: acusando os bifiliados de terem
vergonha da sua região; e afirmando que eles a envergonham.
Traduzindo
esse discurso para termos sociológicos (BOURDIEU, 2007), os grandes clubes de
RJ e SP seriam os maiores detentores de capital
político, midiático e econômico, ocupando assim a condição de dominantes no campo do futebol brasileiro. Os times do nordeste, por sua vez, por
não possuírem aqueles capitais de maneira tão intensa, ficariam na situação de dominados.
Os
slogans citados há pouco convergem com esses discursos anti-bifiliação, o que
mostra como os canais EI estão atentos às discussões que os torcedores
nordestinos vêm fazendo, inclusive às de viés político.
O site
oficial do EI-NE trazia em 2014 um texto que explicava a expressão
#NordesteLivre:
LIVRE
PARA TORCER
LIVRE
PARA SER NORDESTINO
Imagine
como seria bom se todas as TVs respeitassem o Nordeste. Nossa cultura, nosso
orgulho.
Pelo
menos no esporte, estamos livres.
Não
precisamos mais deixar a TV escolher outro time para torcermos. Temos a
competição mais charmosa do Brasil, com álbum de figurinhas, bola e taça
desenhados pensando na gente.
Já
podemos assistir a mais de 200 jogos dos nossos times em 2014 no canal que foi
feito para nossa região.
Só o
Esporte Interativo Nordeste transmite todos os jogos da Copa do Nordeste e 7
estaduais até 2022. E tem uma equipe de 50 jornalistas na região cobrindo
diariamente todos os times, além de 5 programas pensados para nós, torcedores
mais apaixonados do Brasil.
ESCOLHA
SER LIVRE.
ESCOLHA
O ESPORTE INTERATIVO NORDESTE.
Além
desse texto, o site traz ainda várias outras mensagens curtas sobre o canal,
dentre as quais se destaca a seguinte:
Fim da
ditadura do eixo Rio-SP no futebol
Com o
Esporte Interativo Nordeste no ar, o Nordeste pode dizer que tem um canal para
chamar de SEU. Finalmente, o torcedor nordestino ganhou o direito de assistir
ao seu time na televisão.
O EI-NE
apresenta o futebol nordestino como “preso” dentro do cenário esportivo
nacional, comandado pela “ditadura do eixo Rio-SP”. A grande mídia nacional tem
papel determinante na escolha do time para torcer, agindo em prol do “eixo”. Embora
o cenário seja desfavorável, o futebol nordestino ganhou um aliado, não
surpreendentemente o próprio grupo EI, que se afirma distante da mídia
convencional e próximo dos nordestinos. Não apenas próximo: ela é nordestina,
haja vista o uso de pronomes em primeira pessoa ao se referir à região. O EI, ao
saber valorizar o futebol dali, contribui para o processo de libertação do
Nordeste em relação ao domínio de RJ e SP no campo futebolístico.
A
partir desses elementos compreende-se melhor também o slogan #ONordesteMerece:
merece ser livre, merece ter destaque nacional através de uma emissora que o
valorize. O futebol da região tem qualidade suficiente para ser exibido para
todo o Brasil. Transmitir suas competições não é um “favor”: ele faz por
merecer essa atenção.
Já o
slogan "Orgulho do Torcedor Nordestino" é um referência à expressão “Vergonha do Nordeste”,
trazendo também pelo menos dois significados: o EI se orgulha do nordeste; e o
EI é um orgulho para a região.
É
interessante a maneira como o EI-NE joga com esses imaginários. O grupo não
está afastado completamente do lado dominante
do campo do futebol; ele transmite competições europeias (recentemente adquiriu
com exclusividade na TV por assinatura os direitos de transmissão da UEFA
Champions League – Liga dos Campeões da Europa), dá grande espaço aos times “do
eixo” em seus programas e inclusive anuncia produtos ligados a esses clubes em
transmissões de competições nordestinas, como é o caso do serviço de assinatura
de notícias por SMS sobre Flamengo, Corinthians, etc., ofertado pelo próprio
grupo EI. É de se destacar ainda que a grade de programação do EI-NE é
preenchida com várias competições de diversos esportes que não possuem
representantes da região, como reprises de campeonatos europeus, torneios de
MMA, etc. Por outro lado, quando fala diretamente com o torcedor nordestino, o
EI-NE apresenta-se como seu parceiro na luta contra o lado dominante.
Mas a
vitimização não é o único aspecto do futebol nordestino destacado pelos canais
EI. O trecho citado há pouco também destaca a Copa do Nordeste como “a mais
charmosa do Brasil”, tendo inclusive álbum de figurinhas e bola com nome
próprio. Esses elementos geralmente estão presentes apenas em competições de
grande destaque nacional e internacional. Sua presença no “Nordestão” reforçaria
a importância desse torneio. É válido lembrar, contudo, que o álbum de
figurinhas não foi lançado em 2015.
Outra
característica positiva citada é o torcedor, descrito como sendo “o mais
apaixonado do Brasil”. A figura da torcida é central no mundo do futebol.
Clubes e jogadores sempre a reverenciam, destacando a importância da sua força
motivadora nas arquibancadas, bem como no crescimento do capital econômico dos
clubes através da compra de ingressos, produtos oficiais e adesão a programas
de sócio torcedor.
Durante
a cerimônia de inauguração do EI-NE, o presidente do grupo, Edgar Diniz, também
destacou os torcedores em sua fala: “[O Nordeste] é a região mais apaixonada do
Brasil por futebol e que é relegada a segundo plano pelos canais nacionais de
esporte”.
O
discurso do EI-NE deixa claro que, se por um lado os clubes do Nordeste não
detêm os capitais político e
econômico na mesma medida que clubes “do eixo”, por outro lado levariam
vantagem no capital simbólico
representado pelos torcedores.
Percebe-se
como o EI-NE, ao falar com o torcedor nordestino, ficou atento às discussões
que os torcedores da região já faziam a respeito do seu futebol, inclusive na
dimensão política na luta por espaço dentro do futebol nacional. Uma parcela
desses torcedores já apresentava uma interpretação sobre os motivos do desnível
econômico e midiático entre os clubes do nordeste e os de RJ e SP. Essa leitura
cria um cenário de dominação, no qual as principais instituições ligadas ao
futebol nacional agiriam em favor de clubes daqueles estados, que passaram a
ser identificados negativamente por aqueles torcedores como “o eixo”. O EI-NE
adotou esse discurso e passou a se apresentar como um parceiro que agiria de
maneira oposta à mídia do “eixo”: tendo #OrgulhodoNordeste, dedicaria ao
futebol da região o espaço que #ONordesteMerece, contribuindo para um futuro em
que possamos ver o #NordesteLivre da “ditadura do eixo Rio-SP”. Em
contrapartida, o EI também valorizaria o futebol da região ao destacar seus
aspectos positivos, como a sua charmosa competição regional, possuidora de
elementos (álbum de figurinhas e bola com nome exclusivo) que só os grandes
torneios têm; bem como o capital simbólico das torcidas, um dos mais
valorizados dentro do campo do
futebol.
Podemos
entender esse discurso como uma estratégia de buscar a simpatia de
torcedores/telespectadores, além de tentar posicionar-se de maneira afastada de
uma postura de mídia que gradativamente vem sendo questionada e criticada por
uma parcela de torcedores do Nordeste. É um jogo delicado, no qual o EI-NE
busca um meio termo, sem abdicar da cobertura dos times “do eixo” e de
competições internacionais.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU,
Pierre. O poder simbólico. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
CAMPOS,
Flávio de. & TOLEDO, Luiz Henrique de. “O Brasil na arquibancada:
notas sobre a sociabilidade torcedora”. Revista
USP n. 99, p, 123-138. 2013.
VASCONCELOS,
Artur Alves de. Identidade
futebolística: os torcedores “mistos” no Nordeste. Dissertação de Mestrado
em Sociologia, Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, 2011.
VASCONCELOS,
Artur Alves de & ABREU, Domingos Sávio. #ONordesteMerece
um #NordesteLivre: futebol e identidade regional na TV Esporte Interativo.
Inédito.
________________________-
*Mestre e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
** Doutor em Sociologia pela UFC. Professor Associado da mesma instituição, Departamento de Ciências Sociais.
[1] Chamaremos genericamente os canais
Esporte Interativo de “EI”, especificando, quando necessário, uma das emissoras
do grupo.
[2] Os dois primeiros slogans são estilizados em formatos de hashtags, palavras-chaves usadas em redes sociais, que possuem uma forquilha
como primeiro caractere, seguido de uma ou mais palavras, que não escritas sem
espaçamento entre elas.