quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Artigo: O futebol como abrigo de diferentes racionalidades capitalistas

O futebol como abrigo de diferentes racionalidades capitalistas

por Radamés de Mesquita Rogério*

Jogador Anderson (dir.) assinou contrato de quatro anos com a equipe gaúcha. Foto: internacional.com.br


Recentemente, o Internacional de Porto Alegre contratou o jogador Anderson de 26 anos que havia passado os últimos 9 anos no futebol europeu vinculado ao poderoso Manchester United da Inglaterra. A contratação gerou certa polêmica devido às origens gremistas do jogador: ele surgiu no futebol profissional no Grêmio também de Porto Alegre, arquirrival do Internacional, notabilizando-se como jogador importante na história do clube devido ao seu protagonismo no famoso jogo “batalha dos aflitos” – partida revestida de intenso teor dramático que culminou com a volta do Grêmio à primeira divisão do campeonato brasileiro em que o time gaúcho venceu o Náutico de Pernambuco na casa do adversário com três jogadores a menos com um gol de Anderson no final do jogo.

Na época, Anderson era uma promessa do futebol brasileiro jogando nas categorias de base da seleção chegando a disputar os jogos olímpicos de 2008 e foi contratado por um dos maiores e mais ricos clubes do mundo, iniciando sua carreira europeia. Feita a necessária digressão, voltemos ao momento presente: Anderson volta ao Brasil e é contratado pelo Internacional e isso gera polêmica entre torcedores bem como na mídia esportiva. Minha reflexão parte de uma crítica de um comentarista da TV Esporte Interativo sobre o caso: o mesmo afirmava que o jogador poderia assinar contrato com qualquer time, menos com o Internacional, devido ao seu vínculo histórico-afetivo com o Grêmio. O comentarista demonstrou ainda tristeza por esse tipo de acontecimento ter lugar no futebol moderno em que os vínculos não são mais respeitados.

Esse tipo de polêmica no mundo futebolístico nos permite algumas reflexões, destacarei aqui uma: reivindica-se, diga-se, principalmente por parte dessa mesma mídia esportiva, uma profissionalização maior do futebol brasileiro numa evocação direta a necessidade de predominância de uma racionalidade capitalista num cenário em que, evocando Weber, predominem ações baseadas em fins que gerem lucro e mantenham os times em uma situação financeira que lhes possibilitem arcar com seus compromissos financeiros e ter capacidade de investimento. A tradição e o carisma não podem ser referências para a conduta dos dirigentes, o foco deve ser a gestão e não a paixão e isso deve se refletir, por exemplo, na contratação de jogadores e treinadores, de forma que o clube não deve acertar salários com os quais não poderá arcar, mesmo que para isso, tenha-se, por exemplo, que perder um ídolo para o seu maior rival. Esse discurso da racionalidade capitalista da gestão dos clubes brasileiros é fortemente predominante no cenário de nossa mídia esportiva atualmente, com algumas, talvez raras, exceções.

Esse discurso vai à contramão do apelo que pulsa das arquibancadas, pois, via de regra, o torcedor quer a vitória e para isso, gostaria que o seu clube contratasse os melhores jogadores possíveis. É evidente que os torcedores não são totalmente desprovidos da racionalidade capitalista na medida em que compreendem que um time cearense, por exemplo, não tem capital para contratar um jogador de destaque de um dos grandes clubes do futebol brasileiro, assim como o torcedor de um dos grandes clubes do futebol brasileiro sabe que seu time não pode contratar um jogador de destaque dos grandes times europeus e assim por diante. Isso não impede, porém, que o clamor das arquibancadas se sobreponha aos cálculos e planilhas e ecoem exigências de que os dirigentes montem um time que atendam aos seus anseios. Se há mais dinheiro saindo do que entrando e o clube irá pagar caro no médio e longo prazo pelo título conquistado ou pelo rebaixamento evitado, isso pouco importa, a alegria momentânea predomina.

A chave para a compreensão dessa disparidade de raciocínio entre torcedores e mídia é o vínculo estabelecido com o clube: o torcedor vivencia um processo identitário importante em sua relação com o clube de futebol em que estão contidos laços de extrema fidelidade e o entrelaçamento do complexo de relações que envolve, muitas vezes, os vínculos familiares. Torcer o próprio corpo espontaneamente, no sentido literal de torcer, envolve paixão e compromisso com algo que é supraindividual e que permite ao indivíduo uma firme posição no mundo, o que faz desse vínculo algo relevante e que concorre com outros como a identidade religiosa e de trabalho. Como afirmou Damo (2007) esse vínculo é uma espécie de “totemismo moderno” que subjaz um público militante que se constitui enquanto comunidade afetiva movida pelo “drama” de vencer ou ganhar. É estabelecido um sistema classificatório que cria e atualiza projeções e relações, determinando o que o sujeito é ao ser “tricolor” ou “alvinegro”, por exemplo.

Compreende-se que um membro da mídia é um perito que deve estar à salvo dos seus vínculos clubísticos e sua reputação enquanto especialista, depende, muitas vezes, disso, havendo aceitação de algumas exceções. Assim, temos uma disparidade que opõe paixão à racionalidade capitalista.

Há, entretanto, certa dissolução dessa disparidade de olhares, ou de racionalidades, quando a questão é o jogador de futebol e o seu vínculo com o clube. Para o torcedor é difícil lidar com a contratação, por parte do time rival, de um jogador historicamente vinculado ao seu clube, um ídolo. O desconforto sentido pelo torcedor do Grêmio ao ver Anderson vestir a camisa do Internacional explica-se, portanto, pela maneira como ele vivencia e compreende esses vínculos.

Poder-se-ia esperar, entretanto, que o crítico, o especialista, o perito, ou seja, o membro da crônica esportiva fosse capaz de compreender a chegada de um jogador deste para aquele clube como uma transação racional capitalista regida por transações pecuniárias de vulto. O que quero dizer, é que se deve exigir de quem analisa, de quem está na posição de “formador de opinião”, uma posição mais comedida em relação a esse aspecto do “jogo”. Creio que se perde muito facilmente de vista que os jogadores são profissionais que vivem dos contratos que estabelecem, que precisam jogar e que fazem parte de um mundo em que as idolatrias, assim como as oportunidades são extremamente fugidias. Em minha tese, intitulada “No ‘segundo tempo da vida’: o jogador de futebol e a passagem para a pós-carreira” (disponível aqui), analiso o quanto o jogador ocupa um espaço ambíguo no universo futebolístico em relação ao aspecto das obrigações que lhe subjazem (O caso do jovem jogador do Botafogo do Rio de Janeiro, Vitinho é muito interessante também esse respeito – ver página 106 em diante). Nessa pesquisa, argumento que a chave de compreensão dessa problemática está na complicada relação que está por trás do vínculo do jogador com o clube que coloca no mesmo tabuleiro honra/paixão e dinheiro. A mistura é explosiva tanto quanto é inerente ao futebol, é preciso lidar de maneira sóbria com ela e a torcida, não pela ausência de racionalidade, mas muito mais pelos traços característico de seu vínculo com o clube, tem dificuldades com isso. Porém, o “sistema perito”, para usar um termo do sociólogo Anthony Giddens, que constitui a mídia esportiva, embora, reivindique um discurso de racionalidade quando se fala de gestão do clube, junta-se ao clamor das arquibancadas quando diz respeito às ações dos jogadores de futebol. Por que quando se trata do jogador as perspectivas de racionalidade se esvaecem?

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* Professor assistente I da Universidade Estadual do Piauí - UESPI. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Ceará - UECE (2005), mestre (2009) e doutor (2014) em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Tem experiência na área de Sociologia e Antropologia, com ênfase em Sociologia do esporte, das sociedade contemporâneos, da educação e Antropologia dos processos de fluxos no espaço-tempo. Coordenador do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Instituições, Cultura e Sociabilidades (NICS) - UESPI e líder do Núcleo de Pesquisas Sociedade de Estudos em Esporte (SEE) - UFC. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9145460193823643

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