quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Futebol nordestino em discurso na TV Esporte Interativo Nordeste

Futebol nordestino em discurso na TV Esporte Interativo Nordeste
Artur Alves de Vasconcelos*
Domingos Sávio Abreu**

Destaque da página inicial do site da TV Esporte Interativo Nordeste.
Acessada em fevereiro de 2015


Os canais Esporte Interativo são um grupo de comunicação especializado em esportes composto por duas emissoras de TV por assinatura (Esporte Interativo e Esporte Interativo Nordeste) e um serviço de transmissão online chamado EI Plus. Dentre vários outros torneios nacionais e internacionais, eles transmitem com exclusividade a Copa do Nordeste de Futebol desde 2010. Além disso, no ano de 2014 o EI[1] passou a transmitir alguns campeonatos estaduais de futebol daquela região. O interesse do EI no futebol nordestino torna-se explícito com o advento, no final de 2013, da TV Esporte Interativo Nordeste (EI-NE), dedicada à transmissão de competições esportivas sediadas em terras nordestinas, com ênfase especial ao futebol.
O EI, ao criar os materiais de divulgação desses torneios, produz discursos que falam tanto sobre a “identidade” do Nordeste quanto a respeito das características do futebol praticado na região. Nosso desejo nesse artigo é refletir sobre a identidade futebolística do Nordeste que são (re)criadas pelo EI. Para isso, observamos materiais visuais produzidos nos sites e redes sociais, vídeos institucionais, dentre outras ações.
O EI-NE utilizou de maneira recorrente dois slogans em 2014: #ONordesteMerece e #NordesteLivre. Já em 2015 passou a difundir a frase "Orgulho do Torcedor Nordestino"[2]. O sentido dessas frases revela uma ideologia mais profunda, que é melhor compreendida dentro do contexto da bifiliação clubística no Nordeste, sobre o qual falaremos agora de maneira introdutória.
É significativa a quantidade de fãs de futebol no Nordeste que torcem por dois times; um de seu estado e outro de uma região diferente, especialmente dos estados de RJ e SP. Esses torcedores são pejorativamente chamados de “mistos”. Tal alcunha foi criada por outros torcedores, que são contrários à maneira “mista” de torcer: os “anti-mistos”. CAMPOS & TOLEDO (2011) nos apresentam o conceito de “bifiliação clubística” para nos referirmos aos torcedores “mistos”, expressão que usaremos de agora em diante.
Faixa "Vergonha do Nordeste" feita por torcedores do Vitória-BA
em crítica aos flamenguistas baianos

Os anti-bifiliação produzem diversas falas que criticam a bifiliação clubística. Segundo eles, o interesse de um nordestino por um clube como o Flamengo, por exemplo, adviria de uma influência alienadora da mídia brasileira. A presença constante daquele clube carioca na imprensa nacional influenciaria enormemente na escolha do torcedor Nordestino, que acabaria por adotar como “seu” um time que na verdade pertence “aos outros” (VASCONCELOS, 2011). Os anti-bilifiação também argumentam que as instituições mais importantes do futebol brasileiro, como a CBF e a mídia (representada pela Rede Globo, detentora dos direitos de transmissão dos principais campeonatos de futebol no Brasil) atuariam em favor dos grandes clubes de RJ e SP (chamados de “times do eixo”), em detrimento dos demais. Esse favorecimento daria aos clubes “do eixo” grande poder político, midiático e, por consequência, econômico, enquanto os outros times do país, inclusive os nordestinos, não receberiam uma parcela justa desses benefícios. Os anti-bifiliação afirmam que os bifiliados, ao torcerem por um time “do eixo”, estariam favorecendo a manutenção dessa estrutura desigual, desvalorizando algo que pertence a eles – os clubes nordestinos – em favor de algo que é “dos outros”. Uma das frases mais comuns e impactante usada pelos anti-bifiliação, sendo estampadas em camisas e faixas nos estádios, é “Vergonha do Nordeste”, tendo pelo menos dois sentidos: acusando os bifiliados de terem vergonha da sua região; e afirmando que eles a envergonham.
Traduzindo esse discurso para termos sociológicos (BOURDIEU, 2007), os grandes clubes de RJ e SP seriam os maiores detentores de capital político, midiático e econômico, ocupando assim a condição de dominantes no campo do futebol brasileiro. Os times do nordeste, por sua vez, por não possuírem aqueles capitais de maneira tão intensa, ficariam na situação de dominados.
Os slogans citados há pouco convergem com esses discursos anti-bifiliação, o que mostra como os canais EI estão atentos às discussões que os torcedores nordestinos vêm fazendo, inclusive às de viés político.
O site oficial do EI-NE trazia em 2014 um texto que explicava a expressão #NordesteLivre:
LIVRE PARA TORCER
LIVRE PARA SER NORDESTINO
Imagine como seria bom se todas as TVs respeitassem o Nordeste. Nossa cultura, nosso orgulho.
Pelo menos no esporte, estamos livres.
Não precisamos mais deixar a TV escolher outro time para torcermos. Temos a competição mais charmosa do Brasil, com álbum de figurinhas, bola e taça desenhados pensando na gente.
Já podemos assistir a mais de 200 jogos dos nossos times em 2014 no canal que foi feito para nossa região.
Só o Esporte Interativo Nordeste transmite todos os jogos da Copa do Nordeste e 7 estaduais até 2022. E tem uma equipe de 50 jornalistas na região cobrindo diariamente todos os times, além de 5 programas pensados para nós, torcedores mais apaixonados do Brasil.
ESCOLHA SER LIVRE.
ESCOLHA O ESPORTE INTERATIVO NORDESTE.

Além desse texto, o site traz ainda várias outras mensagens curtas sobre o canal, dentre as quais se destaca a seguinte:

Fim da ditadura do eixo Rio-SP no futebol
Com o Esporte Interativo Nordeste no ar, o Nordeste pode dizer que tem um canal para chamar de SEU. Finalmente, o torcedor nordestino ganhou o direito de assistir ao seu time na televisão.

O EI-NE apresenta o futebol nordestino como “preso” dentro do cenário esportivo nacional, comandado pela “ditadura do eixo Rio-SP”. A grande mídia nacional tem papel determinante na escolha do time para torcer, agindo em prol do “eixo”. Embora o cenário seja desfavorável, o futebol nordestino ganhou um aliado, não surpreendentemente o próprio grupo EI, que se afirma distante da mídia convencional e próximo dos nordestinos. Não apenas próximo: ela é nordestina, haja vista o uso de pronomes em primeira pessoa ao se referir à região. O EI, ao saber valorizar o futebol dali, contribui para o processo de libertação do Nordeste em relação ao domínio de RJ e SP no campo futebolístico.
A partir desses elementos compreende-se melhor também o slogan #ONordesteMerece: merece ser livre, merece ter destaque nacional através de uma emissora que o valorize. O futebol da região tem qualidade suficiente para ser exibido para todo o Brasil. Transmitir suas competições não é um “favor”: ele faz por merecer essa atenção.
Já o slogan "Orgulho do Torcedor Nordestino" é um referência à expressão “Vergonha do Nordeste”, trazendo também pelo menos dois significados: o EI se orgulha do nordeste; e o EI é um orgulho para a região.
É interessante a maneira como o EI-NE joga com esses imaginários. O grupo não está afastado completamente do lado dominante do campo do futebol; ele transmite competições europeias (recentemente adquiriu com exclusividade na TV por assinatura os direitos de transmissão da UEFA Champions League – Liga dos Campeões da Europa), dá grande espaço aos times “do eixo” em seus programas e inclusive anuncia produtos ligados a esses clubes em transmissões de competições nordestinas, como é o caso do serviço de assinatura de notícias por SMS sobre Flamengo, Corinthians, etc., ofertado pelo próprio grupo EI. É de se destacar ainda que a grade de programação do EI-NE é preenchida com várias competições de diversos esportes que não possuem representantes da região, como reprises de campeonatos europeus, torneios de MMA, etc. Por outro lado, quando fala diretamente com o torcedor nordestino, o EI-NE apresenta-se como seu parceiro na luta contra o lado dominante.
Mas a vitimização não é o único aspecto do futebol nordestino destacado pelos canais EI. O trecho citado há pouco também destaca a Copa do Nordeste como “a mais charmosa do Brasil”, tendo inclusive álbum de figurinhas e bola com nome próprio. Esses elementos geralmente estão presentes apenas em competições de grande destaque nacional e internacional. Sua presença no “Nordestão” reforçaria a importância desse torneio. É válido lembrar, contudo, que o álbum de figurinhas não foi lançado em 2015.
Outra característica positiva citada é o torcedor, descrito como sendo “o mais apaixonado do Brasil”. A figura da torcida é central no mundo do futebol. Clubes e jogadores sempre a reverenciam, destacando a importância da sua força motivadora nas arquibancadas, bem como no crescimento do capital econômico dos clubes através da compra de ingressos, produtos oficiais e adesão a programas de sócio torcedor.
Durante a cerimônia de inauguração do EI-NE, o presidente do grupo, Edgar Diniz, também destacou os torcedores em sua fala: “[O Nordeste] é a região mais apaixonada do Brasil por futebol e que é relegada a segundo plano pelos canais nacionais de esporte”.
O discurso do EI-NE deixa claro que, se por um lado os clubes do Nordeste não detêm os capitais político e econômico na mesma medida que clubes “do eixo”, por outro lado levariam vantagem no capital simbólico representado pelos torcedores.
Percebe-se como o EI-NE, ao falar com o torcedor nordestino, ficou atento às discussões que os torcedores da região já faziam a respeito do seu futebol, inclusive na dimensão política na luta por espaço dentro do futebol nacional. Uma parcela desses torcedores já apresentava uma interpretação sobre os motivos do desnível econômico e midiático entre os clubes do nordeste e os de RJ e SP. Essa leitura cria um cenário de dominação, no qual as principais instituições ligadas ao futebol nacional agiriam em favor de clubes daqueles estados, que passaram a ser identificados negativamente por aqueles torcedores como “o eixo”. O EI-NE adotou esse discurso e passou a se apresentar como um parceiro que agiria de maneira oposta à mídia do “eixo”: tendo #OrgulhodoNordeste, dedicaria ao futebol da região o espaço que #ONordesteMerece, contribuindo para um futuro em que possamos ver o #NordesteLivre da “ditadura do eixo Rio-SP”. Em contrapartida, o EI também valorizaria o futebol da região ao destacar seus aspectos positivos, como a sua charmosa competição regional, possuidora de elementos (álbum de figurinhas e bola com nome exclusivo) que só os grandes torneios têm; bem como o capital simbólico das torcidas, um dos mais valorizados dentro do campo do futebol.
Podemos entender esse discurso como uma estratégia de buscar a simpatia de torcedores/telespectadores, além de tentar posicionar-se de maneira afastada de uma postura de mídia que gradativamente vem sendo questionada e criticada por uma parcela de torcedores do Nordeste. É um jogo delicado, no qual o EI-NE busca um meio termo, sem abdicar da cobertura dos times “do eixo” e de competições internacionais.

REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
CAMPOS, Flávio de. & TOLEDO, Luiz Henrique de. “O Brasil na arquibancada: notas sobre a sociabilidade torcedora”. Revista USP n. 99, p, 123-138. 2013.
VASCONCELOS, Artur Alves de. Identidade futebolística: os torcedores “mistos” no Nordeste. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, 2011.
VASCONCELOS, Artur Alves de & ABREU, Domingos Sávio. #ONordesteMerece um #NordesteLivre: futebol e identidade regional na TV Esporte Interativo. Inédito.


________________________-
*Mestre e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
** Doutor em Sociologia pela UFC. Professor Associado da mesma instituição, Departamento de Ciências Sociais.

[1] Chamaremos genericamente os canais Esporte Interativo de “EI”, especificando, quando necessário, uma das emissoras do grupo.
[2] Os dois primeiros slogans são estilizados em formatos de hashtags, palavras-chaves usadas em redes sociais, que possuem uma forquilha como primeiro caractere, seguido de uma ou mais palavras, que não escritas sem espaçamento entre elas.

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